segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Incorporação - Parte 5: Visões do Transe de Possessão



Por: Gregorio Lucio


Finalizaremos com este post nosso compêndio a respeito do fenômeno da Incorporação dentro das lides umbandistas, esperando que - embora nossa intenção não seja a de esgotar o assunto - o conteúdo expresso neste conjunto de cinco textos possa ter contribuído com o acréscimo de conhecimentos de nossos leitores ou pelo menos tenha despertado o interesse por aprofundar o Saber e aprimorar sua Prática.

Traremos agora, por fim, uma visão à parte daquela já constituída nos quatro textos anteriores, nos quais abordamos o fenômeno da Incorporação enfocando suas implicações psíquicas, orgânicas e principalmente espirituais na vivência do médium umbandista.

Estabeleceremos colocações que nos possibilitarão identificar as interpretações dadas ao fenômeno do transe de incorporação (conhecido também como transe de possessão) no curso da história de nossa sociedade, na qual a Umbanda encontra-se inserida, de maneira que possamos contemporizar a identidade de nossas vivências espirituais e entendê-las como plenamente válidas dentro do nosso contexto religioso e social.

O fenômeno do transe foi visto durante muito tempo como um estado doentio e demoníaco. Na Idade Média pessoas que praticavam o transe (mesmo aquelas que se viam "tomadas" pelo fenômeno, de maneira involuntária) eram vistas como praticantes de bruxaria, ritos pagãos ou como estando sob possessão demoníaca e de espíritos malignos, etc.

Já no século XIX, com o surgimento da Psicologia e da Psiquiatria, afora os estudos já realizados pela Medicina a esse respeito, foram estabelecendo-se outros termos para adjetivarem o fenômeno do transe de possessão, sempre com a intenção de buscar “explicações fisicalistas que na maioria das vezes, serviram para estabelecer distâncias entre um saber popular e o conhecimento de elites profissionais, sendo também estratégia de afirmação política de disciplinas como a psiquiatria”(Gonçalves, 2008).


Neste contexto, o estudo das questões a respeito dos mecanismos da mente, e até mesmo a sua própria essência, deixaram o campo filosófico (Descartes e sua discussão da dualidade mente-corpo) para irem de encontro às concepções da fisiologia. Surgem aí, o Mesmerismo, a Frenologia, a Fisiognomia, a Etnologia, a Antropologia e, posteriormente, a Sociologia (Mateo apud Gonçalves, 2008).

A inclusão do fenômeno do transe de possessão no rol das “histerias” (durante o auge da escola de Charcot em Salpêtrière, na França), Pierre Janet com sua teoria a respeito das “personalidades duplas” e, mais recentemente, na quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DCM-IV), aparecendo como Transtorno de Possessão, dentro do grupo de Transtornos Dissociativos, trouxeram uma dimensão tendente a classificar os fenômenos de caráter complexo, como os fenômenos de transe mediúnico, como entidades nosológicas (denominação referente à doenças).

No Brasil, Henrique de Brito Belford Roxo (1877-1969) chegou a criar uma nova classe diagnóstica, conhecido como "delírio espírita episódico", que foi apresentada em uma conferência médica realizada em 1936, em Paris. O psiquiatra paulista Francisco Franco da Rocha, tratará também a respeito da "loucura espírita". Igualmente, os antropólogos Raymundo Nina Rodrigues (1900), Manoel Querino (1955) e Arthur Ramos (1940), irão utilizar-se das informações e conceitos transmitidos pela psiquiatria (notadamente a escola francesa) para explicar o fenômeno do "transe de possessão" como estando no rol de doenças psiquiatricas, como a "histeria em massa". 

No entanto, as experiências anômalas (EA) e os estados alterados de consciência (EAC) são descritos em todas as civilizações de todas as eras, constituindo-se elementos importantes na história das sociedades (Almeida, 2002).

Herkovits (1967) trouxe, em seus estudos antropológicos a respeito da mediunidade, uma dimensão social a respeito da prática do transe, deixando de ser caracterizado como sendo de caráter psicopatológico. Com Roger Bastide, René Ribeiro, Pierre Verger e Octavio da Costa Eduardo, a prática do transe mediúnico (também chamado de “transe místico”), passa a ter um valor e uma função social, representando em si uma “metáfora” cultural, pela qual expressariam-se os sentidos de protesto de uma determinada coletividade (composta em sua maioria por indivíduos marginalizados ou oprimidos) em oposição a ordem social vigente.


Contemporaneamente, temos novamente a abertura das discussões em torno da realidade e da validade das vivências espirituais e dos estados de transe, como sendo experiências comuns no cotidiano das pessoas em todo o mundo e, mais especificamente, como estando fortemente ligada à identidade cultural da sociedade brasileira. A psicologia, a psiquiatria, a neurociência, a antropologia, entre outras disciplinas acadêmicas, voltam novamente suas atenções ao estudo das experiências religiosas, enfocando quais as suas interferências e em que níveis estas se dão na saúde e na relação social do indivíduo que as experimenta.

Fernando Câmara (2005), embora ainda classifique o transe de possessão (incorporação) como sendo um estado de caráter doentio, identifica que a prática do transe realizada dentro de um contexto cultural que o perceba como sendo natural e estabelecendo disciplinas e sistemas adequados para a sua manifestação, propicia a liberação das forças criativas do indivíduo, de maneira que este possa significar a realidade mais ou menos opressiva, na qual o sujeito vê-se inserido, além de facultar que este trabalhe com as pressões psíquicas, extravasando-as em um regime controlado, exercendo, portanto, um caráter regulador da vida psíquica. Transeterapia, é a denominação cunhada por esse autor para denominar o efeito da prática reguladora do transe.

Embora as últimas qualificações a respeito dos fenômenos espirituais ainda tratem de maneira patologizante as vivências do transe de incorporação, a adoção de uma perspectiva também social no âmbito antropológico abre campo para discutir-se a respeito das hipóteses espirituais e transcendentes envolvidas nestas manifestações (a realidade do fenômeno como sendo provocado pela interferência de uma mente externa ao indivíduo/médium). Assim, entenderemos que o fenômeno do transe é visto como um estado dissociativo da mente - no qual há uma quebra da estrutura da identidade do indivíduo - somente quando este ocorrer fora do contexto religioso da pessoa.

É natural que realmente durante o efeito do transe de incorporação haja, momentaneamente, uma dissociação psíquica no indivíduo, uma vez que este deverá "ceder" ao acesso de outra mente (a mente do Espírito, individualidade extra-física), para que possa ocorrer o fenômeno. No entanto, dentro do contexto e do sistema religioso em que tal ocorrência verifica-se, esta não derivará para estados patológicos da mente, ao contrário, resultando num processo de intensificação da identidade pessoal, de bem-estar e efeitos positivos sobre a saúde psíquica e orgânica do indivíduo, ressaltando seu potencial criativo e plenificador.

O transe na umbanda não é nem estritamente individual (como no kardecismo) nem propriamente representação mítica (como no candomblé)...(Barros).

Sendo assim, segundo nossa visão de adepto umbandista, a prática do transe de incorporação dentro das práticas espirituais verificadas em nossos templos religiosos, faculta a integração do indivíduo em um processo de ressignificação de sua realidade, em diferentes aspectos (individual, social, psíquico e espiritual), incentivando-nos a refletir quais os resultados positivos de tal experiência na conduta pessoal daquele que experimenta e vive neste círculo religioso.

As discussões, cada vez maiores, abertas pela Organização Mundial de Saúde envolvendo a relação religiosidade x saúde, nas quais foram surgindo e mantendo-se, atualmente, estudos versando a respeito de como a prática religiosa pode interferir na saúde e no bem-estar do homem são importantes para que pensemos a respeito do quanto podemos absorver, em termos de possibilidades de engrandecimento e fortalecimento interior, de nossa vivência particular como adeptos umbandistas.

Uma vez que sigamos em nosso processo de conscientização da realidade que nos cerca e de nossas próprias capacidades criativas como Espíritos, ligados às Leis de Umbanda, colaborando para resplandecer a luz de nossos Guias e Orixás para tudo e todos que nos cercam, colocando-nos como cidadãos exemplares, pais e mães responsáveis, profissionais éticos e religiosos fraternos, contribuiremos para que joguemos luz às dúvidas que ainda cercam os fenômenos espirituais, eliminando aos poucos de nossa sociedade o preconceito e dando mostras do quão poderosas e profundas são nossas Leis, nosso Saber e nossa Prática.

Saravá as Leis de Umbanda!

Saravá os nossos Guias e Protetores!

Saravá a todos os Umbandistas!


Referências:

Zangari, Wellington (2007). Experiências anômalas em médiuns de Umbanda: uma avaliação fenomenológica e ontológica (artigo científico)
_______________ (2001). Estudos Psicológicos da Mediunidade: uma breve revisão (artigo científico)
Câmara, Fernando Portela (2005).  A função reguladora do transe e possessão ritual nos cultos espiritistas brasileiros
Rizzi, Nilse Davanço (1997). Visões do Transe Religioso (artigo científico)
Almeida, Alexander Moreira; Neto, Francisco Lotufo (2002). Diretrizes metodológicas para investigar estados alterados de consciência e experiências anômalas (artigo científico)
Chibeni, Silvio Seno; Almeida, Alexander Moreira (2007). Investigando o desconhecido: filosofia da ciência e investigação de fenômenos "anômalos" na psiquiatria
Prandi, Reginaldo (1990). Modernidade com fetiçaria: Candomblé e Umbanda no Brasil do século XX (artigo científico)
Almeida, Angélica A.S.; Oda, Ana Maria G.R.; Dalgalarrondo, Paulo (2007). O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão (artigo científico)
Barros, Sulivan Charles (----). A possesão como expressão da voz subalterna: o caso da Umbanda (artigo científico).
Gonçalves, Valéria Portugal (2008). A naturalização dos fenômenos sobrenaturais e a construção do cérebro "possuído": um estudo da medicalização do transe e da possessão no século XIX (tese de mestrado)
Capellari, Marcos Alexandre (2001). Sob o olhar da razão: as religiões não católicas e as ciências humanas no Brasil (tese de mestrado)
Código Internacional de Doenças (CID 10 /F 44.3) - Estados de Transe e Possessão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário